domingo, 25 de fevereiro de 2007

(3) O patusco PAULINO
= Histórias verdadeiras =
por Toni Flórido

Não se podia dizer que o Paulino vivia da caridade pública. À parte de este ou aquele lhe ‘emprestadar’ umas coroas, e muitos outros o convidarem para um tinto e para um pastel de bacalhau, ele trabalhava para ganhar o ‘seu’ e não era pouco. Ia para a lota logo de manhãzinha ajudar nas cargas e descargas do pescado, fazer um serviço ao mestre, auxiliar o pescador… e o seu ordenado era o que lhe quisessem dar, desde uns escudos a uns bem pesados quilos de pescado que depois vendia.

A doença
De maneira que, um belo dia, andava o Paulino a dizer a toda a gente que se arranjasse umas coroas era óptimo porque tinha qualquer coisa nos pés que não o deixava andar. E coxeava visivelmente (talvez até com algum exagero) para melhor demonstrar o seu ‘terrível’ mal. O pessoal amigo, condoído, até lhe dava umas maquias extras.
-“Oh sr. doutor!... obrigado. E que Deus lhe pague que eu não tenho troco! E que amanhã eu lhe agradeça de novo!...”
Alguém houve, no entanto, que lhe deu mais vinte ‘paus’ para as mãos mas que indagou:
-“Mas afinal, oh Paulino, qual é mesmo a doença que tens nos pés!?”
-“Oh sr. engenheiro, é… é a doença do alcatrão!!
-“Do alcatrão!!!?”
-“Pois, sr. engenheiro, quer ver? Olhe aqui…”- sentou-se e levantou os dois pés, calçados com uns sapatos mas… sem meias solas! Ou seja andava descalço mas não se via!! – “O alcatrão deu-me cabo das meias solas e agora quero ver se compro uns sapatos novos!!”

Parque-Cine 1
Estava o Parque-Cine apinhado.
Cinema de velhas tradições, orgulhava-se de apresentar não só os melhores filmes mas também o que havia de melhor em teatro, revista ou arte.
Duas histórias nos contaram passadas com a nossa personagem nesta saudosa casa de espectáculos.
A fita que estava a decorrer iludia a expectativa. Era um ‘barrete’. As bocas pela plateia já bocejavam de enfado. O Paulino olhava, aborrecido, para o tecto e depois para as paredes. Depois, do seu lugar no balcão central, olhou para baixo para as cadeiras. E murmurou a meia voz, mas que se ouviu extremamente bem devido ao profundo silêncio que imperava na ampla sala:
-“Ora deixa cá contar quantas carecas estão na plateia!...”

Parque-Cine 2
Desta feita era uma grande companhia teatral que actuava na Figueira. Teatro declamado, uns laivos de ópera e música sinfónica à mistura.
Um drama pungente!
O silêncio na sala era de respeito total. As lágrimas afloravam aos olhos das senhoras. As pessoas seguiam avidamente o que se passava no palco. Um conhecido actor declamava na altura:
-“…estou angustiado!... tenho fome de amor!... tenho fome de carinho!...
Oh, como tenho fome…”
De cá de trás bradou, subitamente, o Paulino:
-“É pá, então toma lá umas peviditas!...”

O vento
Encontrava-se no Arnaldo às voltas com um tintol.
Na rua chuviscava. O vento era fortíssimo.
“-Oh sr. doutor” – exclamou ele para o sr. Arnaldo, o proprietário da então afamada tasquinha do Bairro Novo – “está um tempo dos diabos!”
Ninguém podia deixar de concordar. Era hora de jantar e estavam todos a regressar a casa.
-“Bem…” – volveu o Paulino olhando para o pulso sem relógio – “…já são horas de ir para o meu quarto no Grande Hotel. É que está-se a levantar um ‘oeste-farweste’ desgraçado!...”

Com os copos
Quando o autor compilou estas histórias procurou ir sempre ao fundo de cada uma, tentando isolar as que eram verdade daquelas que eram, tão somente, anedotas que punham na boca e nas acções dele. Foram ouvidas dezenas de pessoas entre pescadores, homens da lota, vizinhos, senhoras que o ajudavam, novos, idosos… e até tentámos falar várias vezes com o Paulino para que ele próprio nos relatasse algumas das suas histórias… mas foi completamente impossível! Ele estava sempre aéreo! Etilizado!! Um dia atirámos-lhe, exasperados:
-“Oh Paulino, assim sempre com os copos não consigo fazer nada!!”
-“Oh meu Deus! Oh sr. doutor, deixe lá, pode cá vir quando não estiver nesse estado que eu atendo-o na mesma!...”


ToniFlórido

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