domingo, 25 de fevereiro de 2007

(1) O patusco PAULINO
= Histórias verdadeiras =
por Toni Flórido

Chamava-se João Paulino, natural de Buarcos. Faleceu com setenta e tal anos em meados da última década. Seus companheiros permanentes: Deus em primeiro lugar… e depois os seus três gatos. Aspecto bonacheirão, uma ironia permanente e de desconcertante palavra pronta. Uma patusca figura típica da Figueira da Foz. De histórias mil…

(Publicado pelo autor, pela primeira vez, no jornal “A Voz da Figueira”, em 1983)

-“Oh meu Deus!”
Era a frase-tipo do Paulino. Pode-se dizer que não iniciava uma conversa sem lançar primeiro estas duas palavras. Que ele reverenciava acima de tudo e de todos, dizendo a todos, abertamente, que amava Deus. –“Quem me faz companhia todo o dia? É Deus. Deus, e o ‘Limão’, a ‘Triana’ e o ‘Tareco’, que são os meus três gatos.
-“Olha o Sr. Doutor!... Oh meu Deus! Está todo engravatado! Até parece que saiu agora mesmo da montra!...”
Uma das particularidades que bem o caracterizava era a sua oportunidade de lançar as frases, irónicas e exactas, no momento ideal, quase sem as pensar e duma piada extrema.
Vivia pobremente, alimentando-se aqui e além dentro das suas posses ou da disponibilidade de quem solicitava. Quanto à bebida… bom, pode-se dizer que bebia bem sem nunca parecer demasiadamente embriagado. Aliás, a sua fluência verbal crescia com uma boa pinga!
Alegremente desengonçado, olhava as pessoas com uma sobranceria elegante mas educada. Tinha, digamos, uma despretensiosa maneira de encarar o semelhante sem nunca faltar ao respeito e mantendo o ‘fair-play’.
Nasceu – segundo afirmava – na esquina da Raposeira, em Buarcos, local que já mudou de nome. No início dos anos oitenta vivia num pobre casebre ‘encravado’ entre prédios ali para os lados do Palácio Sotto Mayor. Quando lhe perguntavam onde morava, respondia convictamente: -“…no Sotto Mayor!”. E, ao mesmo tempo, fungava e passava a mão pelo nariz, ‘cheio de opinião!’
E chega-se à conclusão que – dentro do seu conceito de vida – era um homem feliz. Se lhe perguntassem isso mesmo… bom, não percebia bem a pergunta, mas era rápido na resposta: -“Claro, vivo com Deus, o ‘Limão’, a ‘Triana’ e o ‘Tareco’… mas primeiro com Deus!”
E contra isto nada havia a contrapor.
Calendário um
Um dos calendários do Paulino era o seu cinto. Se alguém se interrogava em que mês estava… -“Oh Sr. Doutor, ora deixa-me cá olhar o cinto!...”
E dava-lhe um aperto. Se o cinto corria muitos buracos, é porque tinha pouca barriga, portanto estava-se em Janeiro. Mas se quase não apertava à volta da cintura, era ‘pança’ cheia, portanto era Agosto, mês de uma maior fartura.

Calendário dois
Praticamente nunca sabia às quanto andava. Muito menos o mês corrente. Ora os seus sapatos eram outro indicativo do tempo.
Afirmava, então, que de verão calçava 39, biqueira larga, castanhos e com cordões.
-“De Inverno!? Oh meu Deus! Uns quaisquer! Sapatilhas, de borracha, de cabedal, qualquer número e de qualquer feitio… menos sandálias por causa
das correntes-de-ar!...”

Sentido proibido
Esta é uma das suas histórias mais conhecidas.
Era típico vermos o Paulino montado na sua bicicleta em qualquer ponto da nossa cidade, dirigindo e recebendo cumprimentos. E claro está que os sinais de trânsito eram ‘chinês’ para ele. Assim, houve um dia em que um polícia (daqueles novatos, vindos de Coimbra e que, portanto, não conheciam a fundo a Figueira da Foz, muito menos o Paulino) o apanhou a pedalar em pleno Bairro Novo, o que era proibido até mesmo pelos “piços” colocados na rua Bernardo Lopes.
-“Alto!” – bradou o polícia – “O sr. não sabe que é proibido circular por aqui?”
-“Olha o sr. polícia! Oh meu Deus, mas que linda farda! Olha, foi agora engomada…
Juntaram-se logo vários ‘mirones’ a apreciar a cena.
-“Identifique-se!”
-“Quem, eu!? Então, oh sr. guarda, eu sou o Paulino…”
-“Meu amigo” – volveu o polícia, já enfadado e a ficar desnorteado –“eu quero é ver o seu bilhete de identidade…”
-“Oh meu Deus!” – replicou o Paulino, fungando e coçando o nariz – “Só tenho aqui um bilhete mas é do Farreca… e se a gente for ali beber um copo!?”
Os ‘mirones’ já eram às dezenas.
O guarda já desconfiava que qualquer coisa não estava bem, pois notava o desprendimento do Paulino e o sorriso irónico das pessoas à sua volta. Vai de puxar do ‘canhenho’ das multas e bradar, apologeticamente, para o nosso artista:
-“Você está multado!”
-“Eu, sr. guarda?! Oh meu Deus!... e de quanto é a multa? ”
-“Seiscentos escudos” – disse o agente secamente.
-“Seiscentos escudos!!?... oh sr. guarda… tome lá a bicicleta e dê cá o troco!!"

ToniFlórido

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